Nichollas Mariano, “ex-mordomo” de Roberto Carlos, que teve proibido seu livro O Rei e Eu, lança agora Esse Cara Fui Eu, mais histórias suas com o cantor
O carioca José Mariano da Silva, ou Nichollas Mariano é protagonista de um dos capítulos mais sombrios da história de Roberto Carlos. Durante 12 anos, foi o homem de confiança do cantor, a ponto de receber uma procuração outorgando-lhe plenos poderes, até mesmo para movimentar sua conta bancária. Era ainda menor de idade, precisou ser emancipado para tal.
Desentendimentos com Nice Rossi, a primeira mulher de Roberto Carlos, levaram à dispensa de Nichollas Mariano. Para a imprensa, e o público em geral, ele seria o “mordomo” do Rei, função que só existia nas várias matérias, meio folclóricas, feitas na época com Nichollas. Na vida real, porém, foi o “faz tudo”, o pau pra toda obra do patrão.
Ele deixou o luxuoso apartamento de Roberto Carlos, com quem morou desde os tempos das vacas magras, sem saber bem pra onde ir, e sem uma profissão definida. Nunca teve vínculo empregatício com o artista. Em 1968, ensaiou uma carreira de cantor, que não passou de um compacto simples, de pouco sucesso.
No final dos anos 70, Nichollas Mariano resolveu escrever um livro sobre o período que viveu com o artista mais bem sucedido e popular do país. Deu-lhe o nome de um programa que Roberto Carlos iria apresentar com Chico Anísio, depois do fim do Jovem Guarda, um projeto abortado: O Rei e Eu. Nele, Nichollas conta detalhes do comecinho da carreira do cantor quando foi morar na casa da família Braga, de cuja intimidade, obviamente, desfrutou.
Acompanhou o Rei, ainda longe da coroa, pelos circos da periferia do Rio, onde rolou fugas de fãs irados, um mamão maduro atirado na cara do cantor, voltas para casa de madrugada no busão. Também de ônibus, ia com Roberto às emissoras de rádio “caitituar” (expressão da época para divulgar) as músicas novas.
Nichollas era bem conhecido entre os radialistas. O futuro “mordomo” trabalhava como discotecário na Rádio Carioca. Foi quem apresentou Roberto Carlos a Magda Fonseca, filha de um dos maiores empresário de comunicação do Brasil, dono de uma rede de emissoras de rádio. Magda, que dirigia a Carioca, foi o primeiro grande amor de RC, e inspiração para vários dos seus sucessos nos anos 60, entre os quais A Volta. Contrário ao namoro, o pai a mandou estudar nos Estados Unidos.
Mal soube do livro, Roberto Carlos atiçou os advogados contra Nichollas Mariano, e Roberto Goldkorn, dono da Editora Ediplan, que o publicou. Aconteceu então a, provavelmente, mais feroz contenda pela censura de uma obra literária já promovida no Brasil por uma pessoa física a um escritor. E isto quando a censura da ditadura militar já estava bem mais amena. À frente o escritório do poderoso jurista Saulo Ramos (que foi Ministro da Justiça, e Advogado Geral da União).
Não se tratou apenas de tirar O Rei e Eu de circulação, mas do pedido de prisão do autor, e a destruição da tiragem inteira da obra.
Em 2015, por unanimidade, o TSF entendeu que pessoas públicas não têm o direito de proibir publicações, filmes, séries, novelas, sobre elas. Amparado pela lei, Nichollas Mariano volta ao livro, recontando a história de O Rei e Eu, com mais minúcias, e paralelamente contando sua vida desde que deixou de trabalhar para Roberto Carlos. Esse Cara Sou Eu – Muito Além de Roberto Carlos, é o título, com selo da Editora Rubi e Livraria.
Por coincidência, quando Nichollas se aprontava para publicá-lo, o pessoal de um selo português entrou em contato com ele para lançar na Europa o compacto que gravou em 1968, com uma música inédita de Roberto Carlos. Para o ex-mordomo do Rei a vida recomeça aos 77 anos. Nichollas concedeu entrevista ao site telestoques.com, falando sobre seu relacionamento com Roberto Carlos, a turbulência que se abateu sobre sua vida com o processo por causa do primeiro livro, e o que o motivou a lançar mais uma obra que tem RC como leit-motiv
– Li seu primeiro livro, é curto, e basicamente sobre Roberto Carlos, sua longa convivência com ele, e a agressiva ação que ele moveu contra você. Fale sobre Esse Cara Fui Eu:
Nichollas – O livro é autobiográfico sim, mas Roberto Carlos é um dos personagens principais. Não é nenhuma obra pra ganhar prêmio, é um depoimento meu, nada mais que isto. Roberto Carlos é o personagem principal das pessoas citadas no livro, mas o protagonista é Nichollas Mariano. Porque, na verdade, este livro é uma narrativa, e um agradecimento a todos aqueles tijolinhos que foram colocados no inicio da carreira do artista, pessoas que talvez nunca fossem citadas se eu não citasse no livro. É uma grande homenagem aos fãs do Roberto. Porque o principal motivo do sucesso de Roberto Carlos chama-se os fãs, os admiradores.
Não era esta elite de admiradores que ele hoje tem. Eram meninas que tinham o pejorativo apelido de macacas de auditório, que acho uma coisa ridícula. Deveriam ser chamadas de lindas meninas de auditório, nomes como Evinha ou Pantera, meninas de periferia, que gastavam o único centavinho que tinham, pra ver Emilinha Borba, Marlene. Começo o livro falando da Rádio Nacional. Durante um certo momento apareceu um garoto vindo lá de Cachoeiro, com um bom talento, querendo ser um artista da Rádio Nacional. O livro vai indo, conta toda minha trajetória, com Roberto envolvido. Conto como a gente se conheceu, porque que fui ser mordomo, aí passo a frase de escritor, entro na área do processo, as injustiças cometidas, a destruição de 70 mil exemplares incinerados num crematório de São Paulo, as aberrações jurídicas, até chegar ao ano de 2022.
– Ter testemunhado a intimidade de Roberto Carlos por tanto tempo o torna uma fonte de informações privilegiada. No seu último livro sobre o cantor, seu biógrafo Paulo César de Araújo, que também teve livro proibido por ele, foi a você para saber detalhes da vida do artista?
Nichollas – Paulo Cesar e eu estamos sempre juntos, quando tem uma dúvida ele vem me perguntar. O que as pessoas não sabem é que eu não era empregado de Roberto Carlos, fui seu homem de confiança, aos 15 anos de idade era procurador do Roberto, fui emancipado e tive em meu poder durante 12 anos uma procuração, que me tornou Roberto Carlos, pai, irmã, namorada. Até a Magda Fonseca, minha chefe, não sabia que eu era procurador dele. Fui do sindicato dos radialistas, era protegido pelo pessoal do sindicato. E pela Magda. O pai de Magda tinha 150 rádios. Eu conhecia todos os disc-jockeys, estava com eles diariamente. Eu trabalhava na Rádio Carioca, que ficava a uns 300 metros do sindicato. O Roberto também teve visão, ele usou as pessoas certas, na hora certa, nos momentos exatos, é muito inteligente, muito vivo em termo de carreira dele, não posso negar. Teve ajuda minha talvez, mas pra ajudá-lo eu tive ajuda de outras pessoas, diretamente, ou indiretamente, estas pessoas fazem parte da história. Estes detalhes o Paulo Cesar vem buscar comigo. Eu agradeço a liberação das biografias a Paulo César, senão, eu nem poderia lançar meu livro agora.
– O que o levou a escrever o primeiro livro?
– O motivo que me levou a escrever, explico numa carta aberta que está no próprio livro. Foi pra dizer, eu vivi esta história, estamos juntos neste período. Não queria mostrar o Roberto Carlos aquele menino que não tem defeito, que é melhor do que Jesus Cristo, que não faz nada de errado. Queria mostrar o Roberto Carlos de carne e osso, que vai ao banheiro. Muita gente acha que ele não vai. Tem qualidades defeitos e virtudes. Não tem nada que fosse denegrir a imagem dele. Não falo que fuma maconha, que é maníaco sexual, ou que tem envolvimento com coisas errôneas. Mas que ele tem também deslizes, como todo mundo na vida tem. Sair com uma menina, que é que tem a ver? Melhor ser mulherengo do que traficante, e outras coisas. Era jovem e solteiro, e todo mundo sabe que Roberto é mulherengo. Não gostou porque falei do acidente, mas aquilo era público e notório, e quando falei disso ele já tinha falado num show do Canecão, em 1977, se não me falha a memória
– Uma das coisas que incomodaram Roberto Carlos foi no trecho e quem você conta sobre o filho que ele teve com uma moça de Minas. Inclusive na época, ele negou, acho que à revista do Rádio.
– Se ele negou na época estava mentindo. Porque a Lucila foi lá em casa, dizer que aquela criança era filho do Roberto. Quando ele conheceu a Lucila, eu estava com ele em Belo Horizonte. Comentei com o Roberto, a Lucila esteve aqui. Ele perguntou quem era Lucila. Eu disse que era aquela menina com quem você passou o final de semana em BH. Disse: Ah não sei quem é não. Eu disse rapaz, você saiu com a mulher, ele teve um filho e diz que é teu. Tem que dar uma forcinha pra ela, não vá querer fugir do problema não. Resumindo: ele mandou dar um dinheiro a ela. Lucila começou a ir lá pegar dinheiro. Acabei fazendo uma amizade mais próxima com ela, gostei da pessoa, confiei nela, e falei pode deixar que vou tentar te ajudar. Sempre arrumava dinheiro com Roberto pra dar a ela, mas querendo esconder da Nice. Eu dizia, Roberto não faz isso não, cara. Chega pra Nice e fala: antes de te conhecer tive um relacionamento com uma mulher, ela teve um filho, e diz que meu. E ele: mas a Nice vai ficar puta comigo, não sei o quê lá. Eu disse Roberto, ela não trouxe uma filha pra você criar? Por que você não pode falar que tem um filho? Deixe de frescura. Eu falava assim com ele, até hoje falaria, sem intermediário.
– E tem o disco, o compacto de 1968, que foi relançado na Europa.
Nichollas – Por incrível que pareça, quando gravei o disco, eu fui convidado, não houve interferência de Roberto, de ninguém. Ligaram pra mim os diretores da Continental e da Chantecler. Escolhi a Continental. O produtor do meu disco foi o cantor Demétrius, e fiquei muito feliz que tenha sido ele, junto com o Som Beat, muito bom o conjunto. Não trabalhei o disco. Eu não tinha vontade de ser cantor, nunca me senti cantor, acho que não sou cantor. Botei na cabeça que estava tomando o lugar de alguém que merecesse gravar. Pelo meu contrato, me davam um LP e dois compactos, ou seja, teria direito de gravar mais um compacto e um LP. Roberto me disse vou te dar uma música mais ou menos para aparecer, e na terceira, ou quarta, você aparece com uma música forte. O disco vendeu mais ou menos na época.
Lancei o livro em novembro. Em junho de 2022, me ligaram de Portugal e alguém me disse que tinha escutado meu disco, e que ele estava sendo muito tocado em casas noturnas de Portugal, os colecionadores estão querendo. A Continental não existe mais, descobrimos que pra lançar seu disco precisamos de uma autorização sua. Me ofereceram um quantia, negociei acertamos por x. No inicio de novembro pra dezembro, lançaram na Alemanha, Portugal, França, e um cara esteve aqui, falou comigo que meu livro também está indo pra outro país.
Você vê uma coisa engraçada, nunca tive intenções artísticas, e o disco está acontecendo em Portugal, as discotecas estão tocando demais. São coisas muito interessantes que estão acontecendo comigo. O disco saiu na Europa, e o livro está tento muita aceitação entre os fãs de Roberto.
LIVRO
Em 1979, o espanhol Tony Sanchez, que desempenhou para Keith Richards, dos Rolling Stones, mais ou menos, as mesmas funções que Nichollas Mariano junto a Roberto Carlos, publicou um livro de memórias Up and Down With The Rolling Stones. Nele conta detalhes da época e que conviveu com o guitarrista. Keith Richards não gostou, mas não proibiu o livro, até porque nem poderia. Perguntado se as revelações de Sanchez eram verdade, Keith respondeu que sim, mas que se ele o encontrasse que corresse. Já Roberto Carlos, amparado numa legislação obsoleta, conseguiu tirar das livrarias duas biografias suas, com fatos verdadeiros, e que não comprometem.
Esse Cara Sou Eu conta muito do Roberto Carlos dos anos 60 e do inicio dos 70, com episódio que a imensa maioria dos fãs não conhece. Um livro curioso. O processo rumoroso, levou a polêmica escritora Adelaide Carraro (1926/1992) a abraçar a causa de Nichollas. Rotulada de escritora maldita, Adelaide assinou vários best-seller populares, entre os quais Eu e o Governador, em que conta um relacionamento com o ex-presidente Jânio Quadros, contando histórias dos bastidores da política. O que lhe rendeu ameaça de censura, e recolhimento do livro (o que não aconteceu) e quase provoca uma CPI.
Certamente por ter passado por situação parecida, Adelaide Carreira abrigou Nichollas em sua casa, e até relançou o livro proibido com um título ligeiramente diferente. Em Esse Cara Fui Eu O ex-mordomo desfia sua trajetória. Pra se virar foi de vendedor de enciclopédias, a ator em filme da boca do lixo (mas sem papeis eróticos).
Nichollas Mariano não fala apena de Roberto Carlos, mas dos que circulavam ao seu redor. Tim Maia, por exemplo. Não foi a empregada do Rei, mas ele o mordomo que recebia Tim Maia, quando ele ia ao apartamento do amigo dos tempos da Tijuca para comer e descolar algum dinheiro. Duvida da cena do filme sobre Tim Maia, em que Roberto Carlos o humilha, atirando-lhe um cédula amassada no chão. Garante que RC jamais agiria desta forma. Um livro que se lê de uma só tirada, embora a revisão seja meio desleixada. Um pecado venial. Porém há no livro um pecado capital,: Nichollas tem muito mais o que contar sobre Roberto Carlos, afinal acompanhou a carreira do artista, dos shows na periferia, aas esnobadas sofridas em rádios e gravadoras, até se tornar o maior vendedor de discos do país. Mas parece Nichollas, apesar dos pesares, ainda é leal ao seu ex-amigo de fé, irmão, camarada.